O mito da maçã mordida
“Uma ordem mitológica é um conjunto
de imagens que dá à consciência um significado na existência que não
tem significado algum — simplesmente existe. Mas a mente sai em busca de
significados; ela só consegue funcionar se conhecer (ou inventar) um
conjunto de regras.”
Joseph Campbell, Mito e transformação.
Desde que o tempo é tempo a humanidade sempre esteve às voltas com a
enigmática maçã, símbolo poderoso na mitologia e nos rituais de troca
das mais distintas culturas de todo o mundo.
“De forma esférica, a maçã representa globalmente os desejos
terrestres ou a complacência a estes desejos”, relata o psicólogo
franco-austríaco Paul Diel.
Por fora é um objeto de fetiche, de sedução. Por dentro, encerra um
mistério: o fruto da árvore da vida, do conhecimento e da liberdade, do
bem e do mal, da derrocada ou da imortalidade.
Associados à maçã, inúmeros mitos.
Hera, rainha dos Deuses, recebeu macieiras com pomos de ouro mágicos
como presente de casamento de Gaia, a mãe terra. Protegidas por um
dragão, foram roubadas por Hércules em um de seus 12 trabalhos com a
ajuda de Atlas e depois devolvidos por Athena. Em outra ocasião, um
destes virou o pomo da discórdia quando Éris o dedicou “à mulher mais
bela” de uma festa para a qual não fora convidada, gerando conflito tal
entre Hera, Athena e Afrodite que acabou por desencadear a Guerra de
Tróia. Na mitologia escandinava, tem poderes especiais de fruta
renovadora e rejuvenescedora. Para os celtas, a ciência, a magia e a
proteção do alimento prodígio, vindo da Árvore do Outro Mundo, que se
come e nunca acaba. Na tradição cristã, toda a polêmica do pecado
original de Adão e Eva.
Contos de fadas abusam desta fruta. Como a maçã envenenada que a bruxa oferece a Branca de Neve, no clássico dos irmãos Grimm.
A fruta é também uma oferenda clássica.
Por suas qualidades nutricionais, é associado à saúde: rica em
fibras, frutose e fitonutrientes, ajuda a reduzir o colesterol, regula o
intestino e também é antioxidante. Um presente perfeito para a
professora, para a pessoa amada… ou, em sentido mais místico, para os
gnomos, orixás e pomba gira cigana entre outras entidades.
Mas nada disso é novidade, sempre fez parte de nossa cultura popular.
Surpreendente mesmo é a transformação da maçã em um mito corporativo.
Nova Iorque é a Big Apple, mas big mesmo é o império Apple. A
história (ou a lenda) é mais ou menos assim: o artista belga René
Magritte usou uma maça verde em diversas de suas pinturas, inclusive com
o surrealista conceito: “Ceci n’est pas une pomme”, em 1964. Encantado
com uma destas obras de arte, Paul McCartney teria se inspirado para
nomear de Apple Records o tradicional selo dos Beatles com quem, anos
mais tarde, Steve Jobs e Steve Wozniak tiveram que brigar após fundarem a
Apple em 1976, em possível homenagem à banda.
Com o tempo, a Apple ganhou poderes de multinação global, com um
símbolo forte (a maçã mordida), uma personalidade carismática (Steve
Jobs), uma língua própria (começa com “i” ou com “Mac”), um arsenal de
gadgets e de sistemas operacionais (perfeito para a competição
mercadológica), uma filosofia (design) e até uma universidade (para
treinamento). E mais sons, ícones, cores, apps, gestuais, acessórios,
modelos de negócios, valores, evangelizadores e fanáticos que
modificaram hábitos de consumo por todo o planeta.
Em matéria no Washington Post em outubro de 2011, Apple é vista como
uma nova religião e Steve Jobs, um visionário líder religioso.
A opinião coincide, ente outros estudos, com o paper de Pui-Yan Lam,
socióloga da Eastern Washington University (2001): “Que a força do
sistema operacional esteja com você — a devoção Macintosh como uma
religião implícita”. Lam compara os aficcionados de ceitas religiosas
com seus ritos de transcendentalismo ao mundo Apple, que oferece gadgets
para a vivência de um futuro utópico estimulando discursos, ícones,
objetos de adoração, comunidades de pertencimento, laços de
relacionamento. A voz de comando é um mundo melhor, onde tudo é mais
simples, prático e inteligente, contribuindo para o bem da humanidade.
Antes da Apple, Jobs juntou dinheiro e fez um retiro espiritual na
Índia, cultivando o seu zen-budismo. Um verdadeiro ciclo mítico do
herói, conforme escreveu um jornalista: “Ele acreditou em si mesmo,
lutou pelo que acreditava… Enfrentou gigantes, e no fim tornou-se o
maior de todos os colossos”. Tinha “Toque de Midas”; sem contar os
“Nêmesis” que apareceram em seu caminho. Também tinha paixão e visão,
ouvia sua audiência, praticava o que dizia.
Em seu discurso na Universidade de Stanford, assistido milhões de vezes pela web, Jobs disse: “Às
vezes a vida te bate com um tijolo na cabeça. Não perca a fé. Estou
convencido de que a única coisa que me fez continuar foi que eu amava o
que eu fazia. Você precisa encontrar o que você ama. (…) Caso você ainda
não tenha encontrado, continue procurando. Não pare.”
Com o anúncio de sua morte, devotos foram em romaria até as lojas
Apple prestar as últimas homenagens, muitos levando seus iPads e iPhones
com velas digitais nas telas. Em meio à sofisticação dos grandes
centros comerciais ou avenidas onde tradicionalmente estão os pontos
comerciais da marca, santuários totalmente ancestrais surgiram com
flores, velas, mensagens e, entre tantas oferendas de acordo com as
tradições culturais de cada local, muitas maçãs.
Em uma loja no centro de Tóquio (Japão) envolta por ramalhetes de
flores, um homem fazia reverência para a vitrine. No centro de Xangai
(China), o luminoso de uma loja foi desligado enquanto pessoas faziam
suas orações. Em Hong Kong, centenas de mensagens escritas em post its
modificaram o layout clean das lojas. Na Coréia do Sul, um telão no
centro de Seul homenageava o CEO. Maçãs mordidas na porta de uma loja em
Londres, na Inglaterra. E mais tributos em Montreal, em Chicago, em
Nova York, em Santa Mônica, na sede da Apple em Cupertino (Califórnia),
em Helsinque, em São Paulo…
Nos depoimentos, “Steve humanizou a tecnologia”, “criou um caminho”,
“mudou meu comportamento, minha forma de ver o mundo”, “hoje presto mais
atenção aos detalhes”, “Eu nasci dentro do mundo Mac”, “É o melhor
professor que tive na vida”, “Adeus, mestre”, “Steve nunca vai morrer”.
Bem, como diria Magritte, isso não é uma maçã; deixou de ser faz
tempo. Apple virou um mito. E participando do rito — de consumir os
produtos e serviços —, você faz parte deste mito fundamental,
encenando-o e delineando o seu pertencimento. A mágica das mitologias se
faz com símbolos, botões de poder que liberam energia e a canalizam;
assim como o fazem as marcas. E aos poucos se transformam em novos temas
imutáveis das culturas mundiais, que com o poder massivo da mídia se
transformam em leis apodípticas, verdades seculares que não podem ser
refutadas.
Escreveu Campbell, o grande connoisseur da mitologia
comparada: “Quem és tu, intelectual arrogante, para questionar essa
maravilha que tem sido a fonte de toda a minha vida?”.
Só estou estudando rituais de troca como estratégias de pertencimento às marcas, senhor. Dádivas, ofertas, mitos — o lado gifted das coisas.
fonte: http://www.inteligemcia.com.br/65775/2012/03/20/o-mito-da-maca-mordida/
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